A pobreza não é sintoma de carência.
Conheci Dona Luci, no bairro do CAIC em 1994, morava bem em frente do GEU –
Grupo Espírita União, numa casa de taipa muito carcomida pelo tempo, onde o
barro já se desfazia e a madeira que o segurava mostrava-se completamente
deteriorada. Na cobertura de palha velha viam-se alguns buracos por onde as
águas da chuva faziam fila. No Centro Espírita, fazíamos um sopão para a
comunidade onde mais de 100 pessoas pegavam sopa em panelas para tomar em casa.
Dona Luci, vez por outra, ficava na janela vendo o movimento, observava
calmamente, como que monitorando se tudo estava bem, mostrava-se satisfeita com
o trabalho. Era uma mulher bem magra, com seus 60 anos no máximo, mas que
pareciam 75, bem pequenininha, no máximo 1,50 de altura, desdentada, pele
branca, mas ressecada pelo sol constante e muito enrugada. Havia algo em seu
rosto que transbordava, que o fazia vencer a erosão infatigável do tempo, eram
seus olhos, brilhavam quando viam o movimento das crianças que brincavam no
terreno em frente e as pessoas que passavam com suas panelas recheadas de sopa
quente, não perdia nenhum detalhe, iluminavam-se, aliviando os sofrimentos que
imprimiam sulcos marcantes em seu rosto pequeno.
Todos aqueles pequenos que corriam
celeremente à sua frente, eram na verdade, filhos de suas mãos caprichosas de
parteira do bairro. Pegou quase todas, as outras, amava da mesma forma, como se
as tivesse pegado com o coração.
Certo
dia, enfrentamos dificuldades para confeccionar a sopa, ficamos presos no
centro da cidade coletando material e ficou tarde, estávamos muito preocupados,
pois naquela época as famílias contavam demais com a sopa de sábado. Chegamos
tarde só para nos desculpar com a comunidade e ficamos até assustados quando ao
chegar no bairro vimos a fila costumeira de crianças com panelas de sopa nas
ruas. O que teria acontecido? Soubemos imediatamente, Dona Luci tirou parte do seu
dinheirinho de parteira e comprou todos os ingredientes da sopa. Fomos lá
pagá-la, mas ela não quis conversa,
-
De jeito nenhum, comprei com todo prazer e farei outras vezes se precisar!
Sabíamos
de suas necessidades e insistimos, mas não teve jeito, ela era decidida, uma
amorosa matriarca escondida na periferia da cidade, só reconhecida pelo povo da
baixada do CAIC onde sua dedicação era de grande suavidade e protegia aquele
povo como se fosse sua própria família.
Fico
pensando, o que move uma pessoa quase miserável a destituir-se de seu próprio
sustento em prol dos outros? Tive o privilégio de conhecer um exemplo do “Óbolo
da viúva” ao vivo.
Dona
Luci era casada com Seu Vicente, um velhinho magrinho e muito calmo, teve
vários filhos e muitos netos. Estão por lá pelo bairro do CAIC e lembram sempre
o exemplo da velhinha do bem, são conhecidos como “Os Pilical”.
A imagem que me marcou foi a da janela, a
velhinha simpática olhando com olhos brilhantes e bondosos as crianças
brincando. Ela veio a falecer, esgotada pelo sofrimento, em 1995, mas marcou
sua história com amor inigualável, onde o sentimento flui de forma tão vigorosa
que a dor mais parece amor.
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