domingo, 27 de outubro de 2013

A Jornada é o destino


A Fotógrafa Renata Aguiar Rodrigues, num texto primoroso que lembra os grandes viajantes do mundo, como Marco Polo, vivencia e repassa ao mundo as mesmas impressões daqueles, experiências fantásticas, para eles, tão surrealistas que poucos foram capazes de entendê-las como grandeza da natureza em uma realidade que proclama a diversidade cultural, como se o DNA dos seres humanos fosse uma construção artística. Mesmo suspeito para comentar, fiquei chocado com a densidade que essas imagens comportam e me coloquei diante delas com o olhar pasmo da artista. Fiquei também angustiado, mas feliz; fiquei ansioso, mas tranquilo; uma ternura me envolveu por ter alguém tão próximo olhando assim para um mesmo mundo que o nosso, mas também tão diferente, belo e emocionante. 
E agora leiam com bastante atenção:

"A jornada é o destino" é uma obra fotográfica composta por 16 retratos de pessoas que encontrei no decorrer dos dois meses que tenho vivido na Índia. O olhar destes desconhecidos entra em choque com o olhar estrangeiro (o meu olhar, sempre tão nativo, aqui se tornou o olhar do outro), confrontando-o ou conformando-o. 

Como fotografa vim para a Índia em busca. Como muitos artistas ocidentais no passado e hoje que se aventuraram ao desconhecido e misterioso oriente (fetichistas orientalistas que se renovam), vim eu também para esse destino imaginário, porem confrontada com a realidade, me dei conta que esse destino que buscava encontrar está posto no caminho, sempre no caminho... 


Na jornada pelos Himalaias, indo de um vale a outro, passando pelo topo do mundo, encontrei pessoas, construí retratos e guardei imagens que agora são parte de mim.  Me surpreendi com os quebradores de pedras, um oficio que pensei, estava morto. Assim a primeira vista, olhei para esses homens e mulheres como fantasmas de um passado que não pude nem datar. Ido o primeiro impacto, me pus a pensar na vida que levam essas pessoas que quebram pedras construindo estradas pelo Himalaia, uma lugar árido, frio, muito frio. O olhar dessa gente me intriga, me perturba e agora me acompanha. 


Descobri, que a maioria deles, vive ali mesmo, nas redondezas, foi o que me disseram... Mas onde? Não existem vilas por pelo menos 6 horas de carro dali, vi alguns acampamentos, tendas! Um sentimento de solidão me invadiu. Como o mundo é imenso, como o ser humano é  pequeno e desamparado e enfim, como a beleza é capaz de permear a melancolia, principalmente aos olhos de quem a vê de fora, confortavelmente sentado num carro... como pode o artista ser responsável? como pode o fotografo não ser um usurpador de imagens? A arte não faz do mundo um lugar melhor, nem tão pouco "[...] reproduz o que vemos. Ela nos faz ver." (Paul Klee) o que sem ela seria invisível.

Tendo, então, o invisível como ponto de conversão, tive o privilegio de conhecer uma comunidade de muito pouca visibilidade, da qual, aliais, nunca ouvira falar; encravada no vale Dhahanu no distrito de Ladakh no estado Jammur e Caxemira  próxima a fronteira da Índia com o Paquistão. Vivem, ainda de forma muito tradicional, um povo que se intitula ariano e é conhecido como Brokpa, tendo uma aparência indo-europeia, em contraste com a predominância étnica tibeto-mongol da região. Ainda no caminho, no ônibus, pude ver algumas pessoas, homens e mulheres, com ornamentos e flores na cabeça... o cobrador da condução me avisou, esse é o povo Brokpa de Dha.

O caminho para chegar ao vale é longo, cerca de 8 horas, mas as paisagens são de tirar o folego. Em ônibus local (péssimas condições, super lotado de pessoas e artigos os mais diversos) serpenteamos, chacoalhando por um caminho ladeado por paredões intransponíveis e abismos escavados por eras de degelo do Himalaia, as paisagens mais arrebatadoras que já vi, um sentimento de angustia e liberdade.

No entanto, chegando a vila Dha, tudo se tornou, de repente, morno, pequeno e aconchegante: um útero! O lugar em si muito fértil, verde, ladeado pelas incríveis montanhas tendo acima o céu mais azul. 




Meu único pesar, é saber que essa cultura esta fadada a desaparecer, os jovens da vila, já não usam mais os ornamentos tradicionais, e nem mesmo nos festivais preservam as danças. Lá ouvi do dono da única pousada, que ele acredita que a cultura tradicional do vale está morrendo, principalmente por conta das estradas que dão acesso a vila e portanto a educação formal (o que para os mais tradicionais, está desvirtuando os valores de sua cultura) e da forte presença do exercito na região, que é foco histórico de atritos com o vizinho Paquistão, onde também vive uma parte do povo Brokpa.  

Essa gente vive num isolamento que nunca tinha visto antes, sem luz elétrica, sem gás, criam seus animais e plantam o que comem. O que sobra da produção de vegetais, vendem para o exercito. Na vila percebi a ausência dos homens jovens, haviam apenas crianças, mulheres de todas as idades e idosos. A enfermeira residente na vila me contou que a maioria dos homens sai para procurar emprego em Leh, capital do estado e outros muitos vão para o exercito, mas não sem antes casar e deixar pelo menos um bom punhado de herdeiros (se assemelhando a tantos outros lugares do mundo em que as cidades grandes atraem retirantes).




Em Deli todos os dias indo trabalhar passo pelo vendedor de maças, uma vez ele me pediu uma foto, a razão, pelo que pude entender, era apenas para ver sua imagem na câmera.  Uma atitude muito comum aqui na Índia, no meu entendimento, ser fotografado, especialmente por um estrangeiro revela uma vontade de reconhecimento e de fuga e ainda (pasmem) fascínio. Reconhecimento como digno de um retrato, da atenção daquele que olha; o olhar aqui que é fonte de poder, não o poder disciplinador do olhar Foucaultiano,  mas o poder de criação, como se esse olhar lhe outorgasse a existência. 

Fato compreensível considerando-se que a Índia é um dos países mais populosos do mundo e onde um sistema de castas, que difere os cidadãos no berço, ainda é forte, embora esteja coberto por uma névoa para aqueles que não falam a língua local, como eu; ainda assim posso sentir essa diferenciação que é altamente naturalizada na sociedade indiana e que vai se somar, as nossas já familiares diferenciações de classes sociais criadas pelo capitalismo de uma emergente semiperiferia.